Dúvidas de um feriadão santo

Bom dia! Espero que todos tenham celebrado a Paixão apropriadamente e com suas famílias, claro! Hoje é Sábado de Aleluia, e não, nao vamos malhar Judas hoje! Tenho uma história.

Esta semana esbarrei com um vídeo de uma amiga minha de anos, evangélica que discutia, como sempre vemos na Quaresma, a forte intrusão da cultura secular, pagã… digamos, no rito católico. Não há nenhuma novidade nisso, mas eu pessoalmente não curto muito quando um religioso ou estudante de um credo diferente busca desqualificar outro culto sem um ancoramento legal na realidade e principalmente, na própria História.

Obviamente não sou o mais católico dos colegas, mas eu já enfrentei muitas dessas dúvidas quando estudava e dava minhas aulas lá. E não tem muito mistério, mas eu acabei explicando pra minha amiga mais ou menos esse lance de calendário, de “o natal não é no dia 25 de dezembro” e aqueles lances de primavera e festas com coelhos e moças virgens nos campos de trigo. Gosto do tema.

A sexta-feira santa é uma data do calendário gregoriano. A Igreja cristã regulou o calendário lunissolar romano depois de longuíssima discussão, secular, sobre como encaixar e calcular o chamado “tempo comum” e os tempos especiais, como a Quaresma e as datas do nascimento de Jesus e o seu périplo até a Ressurreição. Não era desconhecido o grave problema do Calendário Juliano – sim, o calendário criado no tempo do Imperador Júlio César, cerca de 46 a.C e que vigorou no Império Romano e depois, nos reinos cristãos até sua substituição parcial. Por isso o calendário gregoriano permanece com as denominações originais do Latim – e não devido ao paganismo de Roma.

Então o calendário Juliano possuía um problema grave: desprezava a variação temporal causada por uma distorção dos ciclos lunares – a cada 4 anos temos um ano bissexto e de tempos em tempos precisamos saltar um ano bissexto. Pense que isso foi uma constatação de astrônomos e homens de ciências daquele tempo do Papa Gregório, século XVI. Estávamos no meio da contra-reforma e a Igreja estava reconstruindo suas bases para exatamente responder às inúmeras acusações de fraude, imprecisão, desvios. Usando a Ciência.

Neste contexto a Igreja pretendia dar uma precisão universal aos tempos religiosos e ao tempo secular – “civil” no termo atual. Quando o calendário gregoriano (o canto gregoriano vem da mesma motivação mas essa explanação fica pra outro dia) é instituído em outubro de 1582 a defasagem com o calendário Juliano já era de 11 dias! O calendário judaico reflete exatamente a distorção do calendário Juliano, embora este primeiro seja primariamente lunar. Até a ideia de “antes de Cristo” para designar a antiguidade vem deste tempo.

Para o calendário gregoriano a Páscoa obedece exatamente o ciclo lunissolar, gerando a variância de datas que conhecemos exatamente por refletir uma oscilação de 10-11 dias entre o calendário solar e o lunar. Os povos antigos em geral usavam calendários lunares como referência temporal, por isso muita gente vê paganismo no calendário que usamos – sem explicar a necessidade de mudança: Lembremos que os franceses revolucionários pensaram a mesma coisa e também tentaram mudar o calendário…

Celebramos na Semana Santa o Martírio e a Ressurreição de Jesus. Em geral a Semana Santa cai no final do inverno e começo da Pimavera. Os ingleses usam o termo Easter como uma forma antiga que designa a “celebração da primavera”, sim. Mas notemos: a Igreja cristã não era alheia à necessidade de esclarecer e converter o pagão e nisso a introjeção de toda uma terminologia e um vocabulário foi necessária para se conseguir a submissão de inúmeros povos pagãos à Fé. Criticar o termo – que vem do grego – é absolutamente correto, haja vista ser uma construção cultural sobre o fato religioso. No entanto dou o exemplo da Rússia.

A Rússia eram vários reinos e cidadelas pagãs até mais ou menos o ano 1000. Cirilo, santo da Igreja que fez aquele povo lá entender a Bíblia quando CRIOU um alfabeto e uma gramática para ensinar as pessoas a ler e escrever com uma língua que coubesse em suas gramáticas e cultura tradicionais. O Cirílico, a língua russa, nasce desta motivação fantástica e assim a fé cristã vai virar dominante lá e após o Cisma, a Rússia lentamente vai se tornar a base da Igreja Ortodoxa, em subserviência à sede de Constantinopla.

Como falei antes, o Cisma que gerou a separação da Igreja em dois ramos, a Católica (khatolikós, universal) e a Ortodoxa (orthos doxum, ‘doutrina correta’) pelo ano 1000, causou muitos problemas. Por exemplo a Igreja Ortodoxa usa o Calendário Juliano até hoje, por recusar se submeter ao decidido no Concílio de Trento. Então na Rússia atual, por exemplo, a Páscoa acontece 13 dias após a data do nosso calendário!

Então temos um calendário atual que é artificial mas que busca representar de forma fidedigna eventos de um passado distante ancorado em mecanismos celestes amplamente comprovados e verificáveis. Pensemos que a Igreja em seu Concílio de Trento estava a 1600 anos do início dos eventos de Jesus na Judéia. E era preciso combater a ameaça do protestantismo que vinha minando a Igreja exatamente com a crítica severa à desordem interna, à inovação crativa (chamemos de heresias) e aos enormes abusos cometidos por homens de fé e em nome da fé cristã.

Não bastaria passar à faca os protestantes, como os franceses tentaram, ou os exilar no Novo Mundo feito os britânicos. Era preciso ajustar a Igreja e seu cerne, pois a Igreja não era uma fraude, logo poderia e deveria demonstrar a sua Verdade, e isso incluiria o ordenamento do tempo religioso e a unificação dos ritos. No século XVI o mundo estava em uma profunda e definitiva transformação, e novas e mais complexas explicações eram necessárias.

Já escrevi muito, desculpa desde já! Bom dia!