Territórios e poder

Por que a ocupação do território nunca faz parte dessas operações?

Ocupar território sempre fez parte das ocupações de favelas no RJ. Porém a favela não é uma “terra de ninguém” onde apenas o mais forte se impõe. Há favelas com décadas e décadas de assentamento e ali a maioria dos moradores tem suas casas e negócios e o tráfico não as remove ou impede. Da mesma forma há escolas, postos de saúde, mobiliário urbano público e privado dentro da maioria das favelas.

Não é só “ocupar”, mas “ocupar com o quê”. Essa arenga de “levar serviços sociais” é bobagem. Há tudo isso lá, o que não tem lá é exatamente o que o cidadão precisa pagar para usufruir. Tem água e luz mas são precários pois a maioria dos moradores não paga, assim como o saneamento básico, inexistente porque as favelas cresceram sem nenhum tipo de estruturação prévia.Segurança, obviamente está fora de questão, mas as favelas que sofreram intervenção pesada melhoraram bastante nestes períodos, exatamente porque as pessoas podiam trabalhar mais intensamente dentro de seus bairros.

Como acabar com o crime organizado, sem tirar o território dele, uma vez que é o controle sobre o território que mantém a facção?

O que importa é: O crime depende do território. O crime organizado não está na favela, e todo mundo sabe. Mas não é o “rico da Barra”, o único culpado. Temos gente do Estado, temos polícias, temos empresários, e temos gente comum, todos metidos na “firma”. A favela é a parte mais visível e crítica do problema. Toneladas de drogas entram todos os meses no país. Centenas de armas. Muita gente permite este fluxo.

Esqueça o tráfico, o que sustenta as facções é a extorsão, que advém do controle da área: mototáxis, vans, TV, internet, água mineral, gás de cozinha. Quando falam em ir atrás do dinheiro, não seria necessário tentar retomar os territórios, justamente para sufocar o financiamento das facções?

O grosso do dinheiro do CV, PCC, ADA, FDN vêm da venda de drogas e armas. Controlar os mototáxis, ou a internet e o gás – na Serrinha, em Madureira, os caras controlam a venda de farinha de trigo para as padarias da região… – significa exatamente controlar o território usando “soft power”. Quer dizer, não precisam exercer a violência contra todos o tempo todo mas antes, submetem a população de seus territórios à cobrança de tributos em troca da permissão de sobrevivência.

Quando as favelas da cidade de Cáli foram desmontadas no começo dos anos 1990, a prioridade do Estado era abrir caminho nos morros para passar energia elétrica, saneamento, telefonia e assim poder implantar infraestrutura estatal mais robusta: Escola, posto de saúde, transporte, lazer. Sem demolir milhares de casas o projeto não teria sucesso algum.

E lá houve enorme problema, claro. Até hoje uma das pautas dos “movimentos sociais” na região é exatamente a “resistência” contra as desapropriações. Aqui já temos N grupos “sociais” que são contra o desmantelamento de favelas. E temos grupos que desejam eliminar “certas” favelas onde há mais potencial econômico. Interesses, claro.

Quando a gente lê sobre as grandes guerras, sempre se fala sobre acabar com as linhas de abastecimento, para enfraquecer o inimigo e facilitar a tomada de território. O cerco era uma tática clássica dessas situações. Mas como fazer isso quando o que sustenta a facção está dentro do território que ela ocupa?

Aí é a chamada “guerra civil”, né. Quando o próprio povo está combatendo entre si. Hoje em dia esse conceito aí, de guerra clássica, está um tanto superado. Pois hoje quais são as linhas de suprimento que alimentam o tráfico? não existem, é tudo capilarizado. Pensa no Vietnam, onde os chinas desmontavam howitzers e carregavam pecinha a pecinha mata a dentro por semanas, até reunir os materiais e fazer um ataque contra os americanos?

Não há “linhas de suprimento” que alimentam o tráfico nas favelas do Hell ou de SP, ou de Salvador. Há cadeias fragmentadas de gente ganhando dinheiro com o comércio e a logística de pegar pequenas porções e as trazer – trazer do exterior por navios, na mala do monza, na carroceria do caminhão de soja – para cá. Cadeias de policiais e agentes de fiscalização que praticam o laissez faire desavergonhadamente em troca de pequenos benefícios. Gente comum que realiza o contrabando como bico, como jeito de fazer grana.

A única forma de cortar esse sistema capilarizado é injetando insegurança nas redes de trocas deste pessoal. E como se faz isso? atacando nós sensíveis. As fronteiras mais famosas não são o ponto crítico, hoje se entra no país de tudo que é jeito. São 7000 km de fronteira, uns 2000 deles são secos, tu vem a pé. E é virtualmente impossível vigiar tanta fronteira de uma vez.

Daí a necessidade de sufocar as favelas onde os traficantes estruturam seus sistemas de comando, e é por isso que há tanta insistência do Judiciário em impedir este tipo de sufocação econômica: Criando temor nos grupos criminosos, a força daquelas redes de apoio e comércio diminui. A maioria dos traficantes quer dinheiro, não virar camisa. E “traficante” é o cara que traz droga na mala do monza junto do cigarro, é o piloto do teco teco que traz caixas de presente surpresa da fronteira boliviana para alguma fazenda perdida no MT, é a moça que viaja de busão com cinco pistolas na bolsa da neném de colo.

O especialista fala que é inútil mas ele não sabe dizer que tipo de “inteligência” irá desfazer esquemas de lavagem de dinheiro com bitcoin, posto de gasolina, empréstimo de maquininha, carro usado, loja de shopping e farmácia, cooperativa de van, imóvel na praia. Pois desfazer isso exigiria OU um controle absoluto do Estado sobre toda troca econômica dos cidadãos, OU demandaria uma mudança estrutural na forma de se pagar e contratar serviços e bens. Nas duas pontas precisaríamos dar ao Estado um poder ditatorial.

E a gente sabe que isso só funciona em situações bem específicas, tipo El Salvador.

Enfim, não tem solução que passe em dar flores pro bandido, mandar bolo pro bandido, dar abraço no bandido. Controlar território exige muito dispêndio de força, e forte apoio popular. Soluções pacíficas jamais levam em conta o “outro lado” e seus interesses. Algo como se a gente pacificasse o bandido quando parasse de atirar nele – como se a agressividade do criminoso fosse NOSSA CULPA, claro. Falta sempre “combinar com os russos”. Enquanto isso, padecemos.

Bom dia!