A Cultura da Sobrevivência – I

Bom dia.

Uma das características mais sérias da civilização humana é a sua permanência, issto é, a capacidade de o Homem conseguir preservar sua cultura e a sua memória. Assim mesmo, o que nos separa absolutamente de qualquer outro animal é exatamente a capacidade de lembrar, guardar e usar a memória de forma seletiva. Somos humanos porque temos memória, história.

Mas há outras características que surgem deste conceito básico, e que são pedaços da nossa construção social, da organicidade da nossa vida terrena. Foco no caso da natureza artificial de nossa noção de preservação da vida. Espero que todos estejam cientes de que esse negócio de cuidar do outro, preservar a vida e a integridade, não são apenas “instinto”. Há uma camada de cultura sobre este instinto de preservação inicial.

Somos uma espécie que parou de se matar para conquistar e prevalecer há muitíssimo pouco tempo. Infelizmente sempre há os que começam a falar de fim dos tempos toda vez que uma desgraça acontece, mas é normal isso – o perto sempre impacta mais do que o distante. Nós, humanidade, a menos de mil anos atrás ainda trucidávamos pessoa a marretadas para tomar pedaços de terra e mandar quem sobrasse plantar rabanete ali. Mil anos, os astecas comiam gente em rituais complexos onde se destrinchavam crianças para que chovesse mais, chovesse menos, desse menos sol ou menos pragas ou para que aquele outro grupo vizinho não obtivesse sucesso nos seus rituais de sangueira divina.

Aí a gente volta uns passos atrás, pra achar onde a coisa começou a encaixar. como falei lá em cima, a marca fundamental do Homem é a memória. Quando a gente vê aquelas pinturas rupestres sem sentido algum, nem liga mais, já sacanearam tanto esse negócio que nem impacta mais, e aquelas babaquices de cidades perdidas só pioram as coisas. Mas o lance é ali estar exatamente a memória, o cara do passado avisando pro cara do futuro que ele esteve lá, matou bicho tal, haviam pessoas com ele. O homem do futuro, desavisado, esbarra naquilo e descobre que SIM, ele faz parte de algo. E desenha também seu pedacinho. E outros vão ali e ali pondo seus pedacinhos, seus fragmentos de memória.

Estes fragmentos de memória são aquele primeiro sinal de “consciência de grupo”. Pensemos que em algum momento um homem primitivo foi lá e tascou o desenho na parede, anotando seu feito, a alegria de ter matado uma onça grande, uma anta com a ajuda de outros… alguns séculos e gerações depois, já haviam centenas de pessoas que conheceram a história e a repetindo, entenderiam de modo elementar que fazem parte de algo contínuo. Isso, a memória, é o negócio que o Jung vai chamar láaaaaaaa na frente de “inconsciente coletivo”, usando outros fatores como justificativa.

Este homem aí, pelo que sabemos, começou a cuidar dos seus semelhantes tem cerca de 100 mil anos. Não existe marcação pictórica, esses desenhos rupestres, com muito mais que 60 mil anos. Pensemos que o negócio que chamamos “humanidade” tem esse tempo aí, e nesse processo lentinho o Homem foi adquirindo uma ideia de perenidade, de continuidade que SIM, sem dúvida, está diretamente relacionada com a ideia de consciência. E enquanto isso, o povo se matando e se matando.

Todos os povos conhecidos da antiguidade e que possuem memória produzida e presrvada deliberadamente tinham o problema de se matar muito e lutar muito para subsistir. Morrer era um fato tenebroso e absolutamente natural para o homem, e somente uma coisa mudou este modo de agir e pensar. Até uns 5 mil anos atrás a morte era um troço positivo, era o desfecho de sua existência encerrada num corpo. Se tu vivesse dez, vinte ou trinta anos, era indiferente. Seu grupo lhe criou para isso mesmo, e a memória de seus antepassados é a garantia de que quem viesse depois, prosseguiria o caminho de sua tribo, de sua cidade. Essa memoria é, historicamente falando, a nascente da religião, da fé em algo intangível e importante.

A memória para o homem antigo era exatamente isso, o fio que ligava os destinos de todos. Os seus e os de seus inimigos eram um contínuo, e suas vidas eram essa calha reta, onde não tinha muito o que se fazer, você era o que nascia e isso só se alterava quando algo – o Destino? Alguém? – interferia no seu devir. A ideia de mudança, de reconstrução, de refazimento do Homem é desses tempo aí, coisa de dez mil anos atrás. Não seria “religião”, mas seria aquela “crença difusa”, um tipo de agnosticismo. Se crê em algo imaterial e permanente que ultrapassa os individuos, e permanece em seu grupo. É, seria cultura, mesmo.

E gradualmente foram se formulando culturas e memórias distintas, em grupos humanos cada vez mais aleatórios e ao mesmo tempo cheios de similaridades… e estas culturas novas, da antiguidade recente, se organizando, assimilando, deletando umas às outras, SEMPRE produziram em algum momento aquilo que seria uma “religiosidade”. Sim, povos da antiguidade recente sempre tinham esse lance aí. Pode pegar os índios remotos de lá do amazonas, eles têm essa memória divinatória e eles têm a consciência de que isto é resultado do passado e da memoria guardada pela linguagem, pela cultura ancestral. Isso é comum e talvez seja um dos mistérios mais complexos da existência humana.

Este é o ponto. A religiosidade, a crença em algo imanente, que nos ultrapassa e existe APESAR de nós foi o primeiro motivo para uma mudança fundamental. Quando os gregos escolhem fazer a Política, o fazem porque entenderam o enorme prejuízo que era simpelsmente matar a todos até se impor. Os assírios depois de matar o suficiente de seus inimigos, lhes impunham normas para evitar as chacinas eventuais, e a dizimação dos povos submetidos, os obrigando a aprender a cultura do dominador. Os astecas foram matando gente até uns 4000 anos atrás, quando começaram a montar o que chamamos de “império”. Nos três casos o fator da imposição de regras culturais sobre a simples imposição de força foi determinante.

E a cultura que se impôs dentre este universo de outras culturas, esse caldo greco-romano, se asentou exatamente na busca por um equilíbrio meio instavel entre esta vontade inata de nos matarmos a todos o tempo todo por poder e glória, e do outro, a necessidade de permanecer, de existir após nossa vida, uma “eternidade”. Gregos, etruscos, romanos, persas, egípcios levantavam monumentaria fantástica para tentar gravar no tempo seus feitos. A novidade que a religião, que a “cultura” resultante deste negócio todo aí trouxe – lembrando que a essência desta percepção imaterial é desconhecida, mas perceptível, comentei lá em cima – foi a de que a Eternidade era absolutamente IMATERIAL.

Então para este pessoal aí a VIDA passa a ter um valor comparável com o da morte em si. Ora essa, eu preciso VIVER, fazer coisas, demonstrar que estou certo e que estou guardando a memória de meus antepassados. Até porque, fato novo, esta nova cultura (por motivo desconhecido, não entro no mérito) nos trouxe uma noção de muito longa antiguidade. Aqueles povos que citei em comum tinham uma clara noção de perenidade. Se entendiam herdeiros de uma História enorme. Precisavam presrvar isso, essa memória. E em comum, viam a vida como resultado de algo, de um “acordo inicial”. Tipo, não era mais pra só morrer.

A humanidade circunscrita por esta base cultural esboçou o primeiro entendimento sobre a necessidade de preservar a vida de quem irá presseguir com seu legado. Se você morre antes de entender e reproduzir sua cultura, ela perece. O faraó mandou matar os MENINOS hebreus, pra citar um exemplo conhecido. Era preciso preservar os jovens e os ensinar. OS gregos simplesmente tomavam as crianças de seus pais e as educavam. Os indígenas do Xingu punham as mulheres na caça enquanto os homens cuidavam das crianças boa parte do tempo. Deus expressamente mandou os hebreus cuidar das crianças, e as educar. Pense na punição divina aos egípcios.

Este traço cultural, esta ideia ainda demorou muito para prevalecer, claro.

***

Amanhã eu termino meu raciocínio, esta semana me deixou especialmente puto com a humanidade.