Pipa avoada (sim, é o epílogo)

Bom dia!

Ontem à tarde na minha rua, estava uma confusão imensa. Monte de crianças, burros velhos, umas motinhas de ramdamdam, as meninas novinhas enchendo o saco com dancinha de tiquetoque. A rua não tem muito movimento, e estava lotada de gente. Estamos em julho e em julho começa a época de pipa, cafifa, esse negócio que se solta com linha e vento aí no lugar onde vocês moram.

Muita gente mesmo, fiquei impressionado. Meu sobrinho preguiçoso ficava esperando as “pipas avoadas” chegar até o quintal, nada de sair correndo com um bambu na mão, berrando atrás da pipa, negócio era meio que fazer a colheita do material que sempre acaba agarrado nas árvores, uma facilidade tremenda, um luxo para poucos. E era muita pipa, em uma hora que eu fui olhando, caíram umas cinco. Todas feias, aliás, meio malfeitas, coisa lamentável. Não a toa esse lance de correr atrás do prêmio perdeu um pouco o valor.

Mas a qualidade e a aparência da pipa são uma bobagem – hoje em dia se evita pipa de flamenguinho pra não dar porradaria na rua. Nem é o assunto. Semana passada estava muito puto, e ainda estou mas já abstraí boa parte do incômodo anterior. A gente não DEVE manter o ódio no coração, mas não deve afastar a lembrança do que nos levou àquele rancor. Aprendizado, né? Vendo o movimento na rua, estava pensando.

E ontem eu vendo como as coisas são. Eu detestava esse lance de gente na rua soltando pipa, achava complicada a gritaria, a correria, a bagunça da molecada, dos caras atrás de pipa, etc… hoje fico fascinado em como todo mundo ali se organiza, como a cultura do pessoal se divide. Os caras mais velhos ficam numa ponta da rua pras pipas deles não misturar com as dos moleques mais novos, afoitos, querendo cortar e arrastar a pipa alheia. Havia facilmente umas duas centenas de pessoas brincando, tarde de sábado, muito sol na rua, calor.

Eu tinha esse ranço com o povão, não achava essa desordem positiva, me irritava demais a bagunça da periferia. Mas eu tinha isso quando era mais novo, quando eu ainda achava que a civilização era positiva porque a ordem era positiva, porque eu associava a assepsia das coisas cuidadas com força a algo bom, correto. Mau hábito. Eu não gostava daquela anarquia da praia no final de semana, da pelada no campinho, da feira do sábado. Hoje eu adoro esses pequenos desastres, este caos administrado.

E eu notei na rua ontem… familia toda na rua, pai e filhos, primos, mãe, geral na calçada de casa acompanhando a brincadeira. Muitas crianças, pessoal na periferia ainda tem muitos filhos, e aqui a coisa ainda é meio como antigamente. Essa bagunça organizada esconde aquela ordem local de bairro que meio que some na nossa vida de condomínio, de prédio. Muita gente em lugares sem nenhum tipo de controle externo – polícia até passa mas eles nem ligam – e sem nada demais, nenhum problema notável.

Isso aí é civilização. Não é como tá no livro, aquela coisa de lordes ingleses tomando chá na savana de botsuana. Civilização é a existência desta tênue capa que cobre a sociedade. Quando eu era criança haviam os mais velhos nas brincadeiras ensinando seus filhos a brincar com quem já sabia. Você aprendeu um monte de coisas na rua, na desordem pouco amigável da pelada de dezembro, na correria atrás de pipa, na guerra pra arrumar jeito de catar manga no terreno.

Quem ensina civilização aos mais jovens? notaram que aprender a cultura social tem um grau de risco perene. Machucados, porradas, algum membro fraturado, essas coisas. Aprendemos a cultura social como algo que nos recompensa diante de um risco calculado. A gente aprende a viver assim, na brincadeira. E quem está ensinando os jovens de hoje como se vive, como se brinca? Os jovens hoje têm todos essa noção de que se DEVE aprender a cultura de seu grupo, de sua comunidade? Acho que não.

Antigamente a mãe brigava porque os filhos viviam na rua. Hoje brigam porque o filho vive no celular. A rua ficou tão perigosa que se preferiu o filho em casa, protegido, a submeter a criança a tantos riscos. Mas o filho em casa perde muito do aprendizado destas habilidades sociais, desta etiqueta social, melhor dizendo. E ficar em casa é algo fácil, há muitos atrativos. Só que precisamos de ver gente, de pessoas, de vida ao redor. Sintomaticamente nunca tantos jovens adoeceram do espírito, endoidaram, se deprimiram como hoje.

Eu ontem estava pensando ainda naquele lance do aborto, e me veio isso, olhando as crianças na rua. A vida das pessoas comuns é fantástica, e como essas pessoas se tornam o que são, como elas aprenderam todos os signos e todas as ideias que as moldaram. E como tudo isso está ligado, como uma teia, fios fininhos nos ligando e nos harmonizando. Pensei rápido: Aquela pessoa perdida vai fazer falta na vida de um monte de pessoas, dentro e fora da sua familia, qualquer que fosse a família, no final.

Cada pessoa é especial. Nem todas serão boas, nem todas serão positivas. Mas é o risco, né?

Bom dia, e tomem muito sol.