Caminho Nada Suave

Estava vendo uma conversa sobre livro didático na semana aí. Vou dar um pitaco. Livro didático é um INFERNO. Acho de verdade que neste tema vocês desperdiçam assunto ao discutir sobre o livro tal ser ou não indexado, ou se há tal nível de doutrinação nos livros de editora X ou Y. Bobagem pura. Porque a própria ideia de “livro didático” é ruim de per si.

Nste fim de semana ando mais “raiz”, mais professor de História, não sei se repararam. Pois ando esbarrando em muita gente debatendo o presente pelo presente, sem olhar para trás, ver as escolhas do passado que moldaram o nosso mundinho quatro-patista atual. E sobre o ensino e os livros, temos uma história pra contar.

A gente era assim: até os anos 1980 havia um sortimento de livros e autores no mercado, para todas as matérias. Você ia estudar e os professores pegavam uma lista com X livros, e tu se virava pra arrumar um ou outro. Ia invariavelmente estudar com a História do Borges Hermida, a Matemática do Giovanni e Castrucci, a Química do Feltre e o português do Cegalla. Livros eram CAROS e em geral serviam por anos. Se vocês pegarem um livro de Geografia da Zoraida e estudar HOJE vai aprender grosso modo a mesma coisa dos livros atuais.

Haviam outros autores, vários, com temáticas e tocadas diversas. Em geral, eram compêndios com pouca explanação e muito exercício, muito treino. O objetivo dos livros era preparar o aluno para o Ginasial e depois, para o Vestibular. Professor não tinha regalias, ganhava pouco e trabalhava forte pra se estabelecer, conseguir respaldo, pegar um contrato legal. Os pais pagavam explicadoras por fora, quando o negócio era apertado e a reprovação pesava sobre os mais fraquinhos.

Estudar era um negócio para uma minoria que podia se dedicar. Normalmente quem tinha mais condição faria o Ginasial, e depois um periodo de Científico, ou pulava pro Científico direto. Prova pra escola federal, pro Pedro II, para is Institutos de Educação. Pra entrar no Segundo Grau tinha de saber ler, escrever, fazer contas, entender geometria, saber os nomes dos rios e afluentes e os deltas, e onde Canudos aconteceu e porque Prudente de Morais é nome de rua e o Vargas se matou.

A maioria do povo mais pobre fechando o primário já conseguia trabalho jovem ainda, e as meninas de menos condição iam ficando em casa até arranjar noivado e casar. Os rapazes trabalhando, estudavam pouco e formavam família cedo. Vejamos que essa coisa de preocupação com educação até os anos 1970 era meio largada. Não era preciso, quem estudava era uma minoria, grosso modo urbana.

Neste contexto já deu pra entender que livros didáticos simplesmente não eram comuns nas casas dos mais pobres. No máximo um Caminho Suave e uma gramática, um livro de tabuada. Mesmo em sebos livros didáticos eram caros, complicados de conseguir. E a maioria dos professores simplesmente não os usava com alunos, preferindo fazer resumos e fichamentos. Cuspe e giz e aos alunos, muito lápis pra copiar ditado e quadro-negro.

Com os anos 1980, as crises sucessivas, a mudança brutal do perfil do país com o Milagre a educação virou um troço “essencial”. Os militares viam a educação como um elemento de civilização, e socaram recursos numa modelagem de ensino “universal”, e ampla. Veio leis de vestibular, curriculos de escola, MOBRAL, alfabetização rural, Telecurso, ampliação em larga escala da educação pública, a descentralização dos sistemas de ensino… bem, todo mundo podia estudar alguma coisa.

E nisso o livro virou um negócio que dava muita grana. Governos compravam livros para as escolas – não para os alunos – e as editoras entraram numa corrida para atender o que o MEC alinhou com a mudança na Lei de 1971, e com a inovação massiva do Vestibular. Ora essa, agora o moleque estuda para a Universidade, e para o SENAI. A multinacional não contrata analfabeto pra montar trem na Lapa mas a obra na Barra sim, e lá tinha o pessoal do MOBRAL dando aula no canteiro. Só que o moleque quer ser engenheiro, porque engenheiros ficam ricos no Jari, pegando malária em Ananindeua. Escolhas.

E o livro que já era caro, ficou mais caro ainda, e ganhou valor temporal. Isto é, livros novos passaram a valer mais do que antigos, pois o Vestibular virou a meta de todo autor didático. Essa é uma das explicações da transição do “caminho suave” para as apostilas infantis de hoje: Os livreiros foram separando gradativamente o público inicial do final. Não tem como pedir caro em livro inicial, mas pro jovem de classe média? ahhhh…

(hoje isso é completamente diferente, claro).

Com a CF em 1988 Educação virou Direito, Direitos exigem gastos, os gastos exigem muitos impostos e o governo optou depois de um longo, longo debate, implementar um programa de livro didático. Ou seja, o governo iria passar a comprar livros, livros selecionados por gente do próprio governo, para distribuir às secretarias de Educação do país inteiro. E a gente sabe, governos sempre irão querer controlar o DISCURSO e Educação é exatamente uma ferramenta de controle de discurso.

Assim passamos a ter dois tipos de livros no mercado. Um, o “livro do PNLD”, livro “público, gratuito e de qualidade”. Outro, o livro “particular”, caro, vendido em livrarias e que era exatamente o material que se exigia nas provas de secundário e vestibular. O PNLD, o programa do livor didático, estabeleceu padrões mínimos de conteúdo. Por exemplo, um Caminho Suave simplesmente não poderia mais ser usado nas escolas, a partir dos novos entendimentos da pedagogia moderna – efetivamente foi isso o que ocorreu após 1996 com a LDB do FHC.

Pensemos que nos últimos 40 anos o Estado passou a filtrar e fiscalizar o livro didático, definindo temáticas, obrigando autores a incluir assuntos e teorias mais afeitas ao momento político de cada governo. Os livros gradualmente foram perdendo o foco na transmissão de informação para virar ferramenta de “reflexão” e “pensamento crítico”. Os autores passaram a usar, principalmente nos anos 2000, de esquemas menos didáticos e mais ideológicos, e diante da progressiva perda de qualidade dos alunos nos níveis iniciais de ensino (um dia explico) se tornaram “amaciadores de conteúdos”.

O Livro de química do Feltre em 1975 hoje tem de ter 500 figuras, uns trinta textos de apoio, mais umas figuras bem coloridas e se der mole, até musiquinha. Os alunos não entendem nada, mas não sofrem estresse escolar, entende? Eu já tive o enorme desprazer de usar o imundo livro de História do Schmidt, com certeza a pior coisa já produzida em matéria de livro didático no Brasil. A obrigação de sair no soco com quem usa essa merda devia estar exposta em lei federal.

Enquanto isso a geração de estudantes que passaram dois anos de pandemia fingindo estudar em casa hoje estão se formando no ensino médio sem saber ler e escrever direito.

Sério, não se preocupem com os livros dos seus filhos. Se preocupem em LER os livros que seus filhos usam para estudar, leiam e ouçam o que os professores deles explicam, não economizem tempo… vão à escola para pressionar, para verificar, para monitorar o que a coordenação escolar anda fazendo com suas crianças. Faça com que a escola saiba que você se importa pra caramba com eles (ameaçar ajuda), e faça seu filho ter certeza disso. Livro é muleta, o professor é o problema real.

Bom dia! Boas leituras, gente 😉