Precisamos conversar sobre o muro – II

Bom dia.

Acho que todo mundo aqui já assistiu a epopéia criminal, Cidade de Deus. Não é um mau filme, vou logo avisando. É do melequento Fernando Meireles, mas é um filme bastante correto e fonte perene de memes e piadas com o Zé Pequeno. Mas é um filme interessantíssimo. Do que ele fala exatamente? Sim, da Cidade de Deus, a favela enorme que está encrustada na parte mais rica do Hell de Janeiro, a Barra da Tijuca. A parte interessante é o período em que a história é contada.

Quem assitiu ele pensa que é como Tropa de Elite, outro filme muito bom, este efetivamente lendário, mas tem aquele lance: A história se passa entre 1971 e 1979. Tem erros grosseiros de continuidade e adequação histórica, mas em essência, estava sendo explicada em película a gênese do Comando Vermelho – e a natural simpatia de jornalistas e dos ricos e abastados pelo grupo marxista-traficanista carioca. Tá ali soletrado. Fácil.

Quando o crime chegou nas favelas da cidade? Não, não “chegou”. Ele fazia parte da cidade desde suas origens. A favela é que lentamente foi virando um espaço preferencial do criminoso e de suas ações. Até os anos 1960 o crime era cotdiano, e bastante disperso. Com a ditadura, a pressão contra o crime urbano aumentou muito por aqui. Mas a pressão aumenta por ter havido um aumento no crime urbano, correto? SIM. Com a saída da Capital a cidade naturalmente empobreceu. E empobrecendo, acaba criando condições para que os criminosos se tornem ousados.

Só que um fenômeno novo aconteceu. Enquanto na capital a pressão contra o crime aumenta, com o DOPS ajudando as polícias a investigar o tráfico e o crime comum, na periferia, na Baixada fluminense, surgem os “esquadrões da morte”, grupos de matadores que se dedicavam a caçar bandidos, pegar grana de comerciantes e fazer serviços para outros policiais, políticos locais e claro, para o pessoal do DOPS que não estava a fim de ir em Japeri caçar gente do PCB. E esse troço era totalmente conhecido. Era bizarro vermos nos jornais caras como o Mariel Mariscott famoso, ou saber da gang do Mão Branca, partisans no limbo entre o governo e os criminosos da pista.

Logicamente vamos pensar em quê? resposta a isso, correto? SE não houve mudança nenhuma na violência, que se manteve estável durante todos os anos 1970, quer dizer que o crime se realimentava. Aí entra o evento de choque.

No começo dos anos 1970 os grupos terroristas marxisrtas europeus como as Brigadas Vermelhas, Baader-Meinhof, estavam em franca atividade junto de grupos nacionalistas radicais de matiz socialista, como o ETA e o IRA. Gradativamente as polícias europeias (notem que a UE em formação nunca tomou medidas em bloco contra o terror marxista) foram identificando e destruindo os grupos, a um custo terrível – lembram do Battisti? então… – e na medida em que os líderes iam caindo, os membros destes grupos foram ou partindo pra outras lutas mais “seguras” como a bandeira ecológica ou a causa gay, mais adiantes, ou viraram grupos criminosos, já ligados a máfias locais de comércio de drogas e armas.

Nos anos 1970  centenas de “revolucionários de boutique” bananenses estavam pela Europa, “exilados”. Muita gente, muitos destes bancados com nossa grana, aliás. vários deles tveram contato com gente destes e de outros grupos terroristas (lembra do Battisti?) e neste contato surge o embrião de uma ideia complexa, que era a de promover o marxismo revolucionário dentro dos presídios, já que na Europa estava ocorrendo, no final dos anos 1970, esta simbiose entre mafiosos e criminosos comuns (liberais inconfessos :D) e os criminosos ideológicos que buscavam poder, proteção e público para suas ideologias.

Nos présidios do Hell de Janeiro era comum presos políticos ficarem em alas distintas dos presos comuns. Mas isso não impedia que houvesse um contínuo contato entre estes grupos. Os presos políticos davam aulas, faziam oficinas, divulgavam seu ideário no meio dos trabalhos permitidos nos presídios. E assim disseminaram rapidamente seu corolário de “banditismo social”, ideia que não é de Hobsbawn, mas antes,do Thompson, outro inglês comunista dos infernos. E os presos entenderam que era preciso se unir para ganhar força e precisavam de santuários, armas, dinheiro e principalmente, voz e poder político.

Quando o filme Cidade de Deus acaba, estamos em março de 1979. A Falange Vermelha já havia divulgado seu manifesto pedindo Paz, Justiça e Liberdade (toda vez que vocês verem algum imbecil com “PJL” em qualquer lugar, creia, tem bandido no rolo), direitos humanos para os presos, melhores condições de vida nas cadeias e a descriminalização do uso de drogas, por exemplo. Seus líderes não eram os marxistas fofinhos politizados (sempre lembrem do Freixo no Tropa de Elite), mas sim traficantes e assasinos que aderiram objetivamente ao discurso desagregador do Estado. Gente efetivamente interessada em uma “nova ordem”.

Escadinha, Gordo (Sabe CVRL? É de Rogério Lemgruber, ele mesmo), Meio-quilo, Professor, eram traficantes com bom nível cultural, inteligentes e que rapidamente captaram a necessidade de criar um consórcio do crime. Contra a poícia regular, apenas o combate irregular e em seu próprio território, resolvia. Marighella era a fonte das ideias, e era a tônica desse povo todo construir seus negócios em torno de uma ideia poítica basica, que atraísse novos jovens para a atividade do crime, e também gerasse uma rede de proteção que incluísse gente dos “esquadrões da morte”, cooptáveis com dinheiro, e com favores.

Nascia ali o crime organizado no Hell, nascia a milícia paraestatal e nascia o governo social-democrata moderno, simbiótico com o crime.

Em abril de 1983 Brizola toma posse no Palácio das Laranjeiras. Sintomaticamente a Globo anuncia a microssérie “Bandidos da Falange”, sobre uma fictícia organização criminosa da Capital. O resto, precisa de mais uns vinte parágrafos pra explicar, mas creio que todo mundo conheça o final da história.